O CAFÉ financiou a Semana de Arte moderna de 1922
A semana de arte de 1922 só existiu graças a cafeicultores interessados numa São Paulo protagonista em cultura. Entenda a economia que deu à luz o evento.
Por Alexandre Carvalho
A família que virou CEP
Naquele início de século 20, São Paulo se transformou no eldorado de quem procurava trabalho e uma vida melhor. Seu desenvolvimento atraía imigrantes para os andaimes de arranha-céus, para a reforma urbana, a indústria e o comércio. Tanto que a população deu um salto. O censo de 1900 registrava 240 mil habitantes na cidade; já no de 1920, eram 579 mil – um aumento de 140%. Para efeito de comparação, no Rio de Janeiro, a expansão populacional naqueles mesmos 20 anos tinha sido de 42%.
De uma vila colonial na primeira metade do século anterior, São Paulo emergiu quando, com a decadência dos engenhos de cana-de-açúcar, o Brasil passou a ter sua economia lastreada na exportação de café.
De cada quatro xícaras bebidas no planeta, três eram feitas com grãos produzidos no país, especialmente nos arredores de Campinas e Ribeirão Preto, no Oeste Paulista.
Naquela época, a família Prado tinha se tornado a maior produtora de café do mundo. E um de seus membros teve papel decisivo nas transformações que levariam São Paulo à fama de locomotiva do Brasil: Antônio Prado.
Conhecer a história desse clã é deparar-se com uma série de nomes de ruas da região central de São Paulo nos dias de hoje – o próprio Antônio Prado virou praça no distrito da Sé. Seu avô foi o Barão de Iguape (rua do bairro da Liberdade); sua mãe, Dona Veridiana (rua de Higienópolis), comandou fazendas e um salão cultural em seu palacete no distrito de Santa Cecília; já seu pai, Martinho Prado (via que liga a Rua Augusta ao bairro do Bixiga), foi quem multiplicou a fortuna da família ao substituir a cana-de-açúcar em suas propriedades pela cultura do café.
Primogênito desse casal, Antônio Prado fez mais do que todos seus parentes. Conselheiro do Império, senador, ministro das Relações Públicas, ele se tornaria o primeiro prefeito de São Paulo em 1899.
E resolveu aproveitar o boom econômico do café para deixar sua marca na cidade. “Sob seu comando, terá início uma cadeia de reformas cujo objetivo será adequar a urbe oitocentista, em muitos aspectos ainda recoberta pelo mofo colonial, aos tempos de riqueza trazida pelo ‘ouro verde’ [o café]”, define Roberto Pompeu de Toledo, em A Capital da Vertigem.
No mandato de Antônio, São Paulo ganhou energia elétrica, pontes estratégicas e o aterramento de várzeas, que emperravam o deslocamento em dias chuvosos. O prefeito ainda mandou construir a Avenida Tiradentes, e nela inaugurou a Estação da Luz e a Pinacoteca do Estado.
Traço herdado da mãe, Veridiana, sua atenção para a cultura também era evidente. E desse interesse surgiria o palco da futura Semana de Arte Moderna: o Theatro Municipal de São Paulo, fruto do encontro entre Antônio Prado e o arquiteto Ramos de Azevedo. A inauguração dessa “casa de ópera”, em 1911, foi tão concorrida que provocou o primeiro grande congestionamento da história da cidade – imobilizando, lado a lado, automóveis e carruagens.
Em palco nobre
Um nome menos lembrado quando se fala da Semana de 22 é o de Graça Aranha, autor do romance Canaã. Uma injustiça. Além de ter feito a palestra inaugural do evento, foi ele quem indicou o caminho do dinheiro aos intelectuais que queriam fazer um festival grandioso para divulgar as artes e teorias modernistas (a ideia do evento partira do pintor Di Cavalcanti). Em bom português: sem Graça Aranha, não haveria a Semana. E, na época, esse caminho dos tijolos dourados levava à porta do magnata Paulo Prado, o filho do já ex-prefeito Antônio.
“Paulo Prado acolheu cordialmente os moços modernistas, impressionou-os com sua figura de rico inteligente e definiu seu papel na empreitada. Não entraria como o mecenas extravagante de um salão de inconsequências”, apontou Marcos Augusto Gonçalves, autor de 1922 – A Semana que Não Terminou. Isso significava que o homem da grana queria, sim, algo revolucionário, que projetasse São Paulo no cenário artístico do país, mas não tão radical que afastasse seus pares – que também iam tirar dinheiro do bolso para o show-happening-exposição.
Cafeicultor como seu pai, Paulo ainda investia nos setores bancário, industrial e imobiliário, e acreditava no “papel civilizador das elites”. Para ele, deveria ficar claro a todos que a Semana de Arte Moderna não era só um sarau de artistas, mas uma mobilização do topo da pirâmide da sociedade paulistana.
Se dependesse só dos intelectuais envolvidos, o evento provavelmente se daria num salão qualquer da Rua Líbero Badaró, a mais chique da época. Mas Paulo era filho de quem tinha mandado construir a melhor casa de espetáculos da cidade.
A ele e outros ricaços, coube pagar a semana de aluguel do Theatro Municipal, além de arcar com os custos de deslocamentos de artistas e transporte de obras de outros estados. Se a organização era paulista, o elenco era interestadual. O compositor e maestro Heitor Villa-Lobos, por exemplo, futuro ídolo de Tom Jobim, vinha do Rio – um lugar distante numa época pré-Via Dutra.
“Não era nada simples nem barato”, afirma o diretor artístico da Fundação Theatro Municipal, Bruno Imparato, à frente das celebrações do centenário da Semana de Arte Moderna. “O pernambucano Vicente do Rego Monteiro compareceu com oito quadros. Hoje, trazer telas do Recife para São Paulo sem danificá-las já é um desafio complexo. Cem anos atrás, então, era quase uma impossibilidade logística.”
Há rumores de que Prado teria até pago uma claque para vaiar as apresentações no segundo dia do evento – os aplausos bem-comportados na estreia não combinaram com a repercussão que ele esperava.
Modernismo que renasce
A frequência à exposição de arte no hall de entrada, onde estavam obras de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Rego Monteiro e do escultor Victor Brecheret, entre outros, era gratuita, mas assistir às apresentações musicais, balés, poemas e palestras exigia ingresso pago.
Entre os intelectuais e artistas presentes, Oswald e Mário recitaram poemas e falaram sobre a estética moderna. Villa-Lobos teve obras executadas em todos os três dias da Semana, e a estrela do piano, Guiomar Novaes – que nada tinha de modernista –, fez a alegria do público.
Quando a Semana acabou, para frustração de seus mecenas, São Paulo não virou, a capital brasileira da arte moderna. Talvez nunca tenha se tornado o que aquele grupo de intelectuais e milionários sonhava. Mas é certo que deixou legados.
O fato é que a Semana de arte de 1922 foi para a cultura brasileira um acelerador tão importante quando o café foi para a economia. A Semana de Arte Moderna deixou frutos que seguem se multiplicando.
Belo investimento, cafeicultores.
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Leandro Lassmar/Superinteressante
EXPOENTES DA SEMANA DE ARTE MODERNA
1 – Mário de Andrade era um polímata: além de escritor, foi musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo. Autor de Macunaíma, romperia sua longa amizade com Oswald de Andrade quando este insistiu em piadas sobre a sexualidade do poeta de Pauliceia Desvairada.
2 – Oswald de Andrade, escritor, ensaísta e dramaturgo, tinha um dom para a provocação e a polêmica – o que ajudou na propaganda dos modernistas. Seu Manifesto Antropófago propôs “devorar” o que a cultura europeia tem de melhor, digeri-la e devolvê-la com nossas próprias raízes.
3 – Villa-Lobos, compositor e maestro, precisou ser convencido a participar da Semana. Mas foi muito aplaudido. A exceção, cômica, aconteceu quando, por uma crise de ácido úrico, apareceu com um pé enfaixado, mancando. A plateia achou que fosse uma “performance futurista” e vaiou sem dó.
4 – Graça Aranha foi autor de Canaã, marco do nacionalismo na literatura. De personalidade paradoxal, foi pré-modernista ao mesmo tempo em que ocupava uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Apresentou o grupo modernista aos mecenas que patrocinariam a Semana da Arte Moderna.
5 – Paulo Prado, pertencente a uma das famílias mais influentes do Brasil, foi também incentivador da arte. Tanto que encabeçou o grupo que arcaria com as despesas do evento – que só foi uma “semana”, e não um mês, por sugestão de sua esposa, que se inspirou na Semaine de Fêtes, da França.
6 – Anita Malfatti nasceu com uma deficiência física: sua mão direita era atrofiada (ela até a cobria com um lenço). Treinada para usar a esquerda, se tornaria uma das principais pintoras do Brasil, ao lado de sua colega modernista, Tarsila do Amaral. Foi a grande pioneira da arte moderna no país.
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